segunda-feira, novembro 21, 2005

Blade Runner



Imensa cidade que parece sem fim, intensamente verticalizada, negra e febril. Explosões de gigantescas chaminés quase atingem uma máquina voadora. Um olho que reflete as luzes da cidade. Assim somos apresentados ao mundo de Blade Runner (Ridley Scott, 1982). Mundo da experiência urbana; o ser humano que vive seus dias no caos por ele criado - a natureza ali não existe. Ou se existe foi ele próprio quem a criou.
Ano de 2019, a cidade é Los Angeles. Um ex-agente especial Deckard (Harrison Ford, em enigmático e seco personagem), é requisitado para fazer um trabalho que ninguém pode fazer melhor do que ele - caçar andróides. Nesse mundo futurista os andróides são utilizados como mão de obra escrava na colonização humana do espaço até que, em decorrência de uma sublevação desses escravos, a presença deles na Terra é proibida e a vida andróide reduzida. O agente especial, apesar de relutante, aceita a missão - caçar quatro andróides que retornaram a Terra. O filme com esse enredo de certa forma simples é, atualmente, uma espécie de paradigma para o cinema Sci-Fi, principalmente pela união de vários elementos: a perfeita ambientação futurista, trilha sonora impecável, apesar de datada de Vangelis, e mistura de alguns gêneros do cinema.
O filme retrata a cidade levada a seus extremos - a megalópole do final do século XX. Cidade sem fim que agride, aprisiona, mas que é o ambiente do ser humano, portanto onde a luta pela vida se dá. A cidade pós-futurista do filme é uma ambiente hostil, mas que proporciona a vida de diferentes tipos de seres humanos. Uma cidade em que reina o caos, onde se dá a convivência harmônica e, paradoxalmente, cheia de tensão entre a tecnologia mais moderna - no caso os andróides - e a luta pela sobrevivência de seres humanos perto da selvageria das ruas imundas e irrespiráveis. Cidade multicultural, fragmentada, alucinante, caótica. Cidade pós-moderna: a cidade que representa o fim das utopias - a anti-cidade-moderna-do-futuro.
O olho é central para a experiência urbana (pós) moderna. Blade Runner coloca esse órgão como centro das diferenciaçõees entre o humano e o não-humano (pós-humano?). Os andróides jogam com suas vidas caçando as experiências que lhe foram negadas. A retina do pós-humano não traduz a experiência em vivência, é o homem neurastênico que Walter Benjamin vê em seu texto que analisa a poesia de Baudelaire.
Bergson, Proust e Freud são aproximados pela leitura do filósofo frankfurtiano em sua busca pela experiência moderna - a memória é o elemento que os une. Em Busca do Tempo Perdido é uma tentativa de Proust de reproduzir as questões que Bergson colocou sobre memória e experiência. No entanto, o escritor francês elabora uma teoria da memória em que biparte a memória pura bersoniana, para isso elabora o conceito de memória involuntária (mémoire involontaire). Para Proust até a famosa experiência com o sabor da Madeleine a memória com a qual lidava era de um tipo, de certa maneira, artificial, ou seja, não o transportava ao passado, apenas agia de forma consciente sobre partes já assimiladas no inconsciente, portanto, essa nova memória proustiana vem de uma experiência que está "fora do âmbito da inteligência" - não podendo ser resgatada apenas com um esforço mental, mas através de um exercício que resgata a vivência.
Freud aparece no texto de Benjamin para dar uma melhor fundamentação à relação entre memória e experiência. Para o psicanalista, segundo Benjamin, há uma diferenciação entre conscientização dos chamados choques e a transformação em resíduos mnemônicos, segundo as palavras de Benjamin: só se pode tornar componente da m�moire involontaire aquilo que não foi expressa e conscientemente 'vivenciado', aquilo que não sucedeu ao sujeito como vivência. Assim, o consciente se torna como um protetor do ser vivo contra os choque externos e quanto mais choques o indivíduo está em contato, maior será o processo de conscientização. A experiência torna-se, assim, mais presente do que a vivência. A vivência na era moderna nos é roubada em troca de uma conscientização extremada em forma de experiência. Nos tornamos neurastênicos para não sentir todos os choques que nos afetam, por que tão importante para a vida quanto sentir é não sentir, assim não temos mais a vivência de tempos passados - acúmulos de experiência em forma de memória. O que temos são apenas experiências encontradas no consciente, mas que são fragmentadas, não possuem quase nenhuma relação com o todo. Não criamos um ambiente psicológico linear que encadeia as experiências sob a forma de memória - a vivência é mínima.
No filme de Ridley Scott os andróides são os caçadores da vivência, buscam seu tempo perdido. Os humanos são os caçadores de andróides, querem por tudo matar aquilo que não desejam ser. Mas a fronteira entre o humano e o andróide no filme é sempre tênue, a cidade-sem-fim os aproxima. O neurastênico, não-homem, através da expirência consegue adquirir emoções, o homem da experiência do choque (pós) moderna se torna, a cada dia, impassível diante do sofrimento. Ambos buscam a vivência.
O olho é órgão guia de quem naquele ambiente procura a vida. O caçador de andróides (ele também um andróide?) procura na sua coleção de fotografias aquele tempo perdido que sua memória não pode oferecer. Os andróides procuram em seu criador, o humano, a chave para ultrapassar aquela memória implantada que só a fotografia pode lhe dar. O andróide e o humano são filhos do mesmo ambiente. Ambiente esse que, por lhes negarem a vivência, os transformam em caçadores.
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terça-feira, novembro 01, 2005

Ante-quase-nada


Quase sempre, ultimamente, chego ao limite. O ato de escrever me é quase uma obrigação porém fico no abismo que há entre a vontade e a ação. Me perco nesse limbo, assombrado pela angústia, partido em duas metades. Esse nada que me toma as mãos me conduz a um platô violento em que a luz é agressiva, não por ser forte, mas por ser irradiada da poeira que cobre meus pés. Escrever me é, então, impossível. Cego, tateio em vão o ar em busca de palavras, mas todas dilaceram ao contato. Fico nu, perdido entre um balbucio entrecortado por um espasmo e o silêncio.
Fica, portanto, essa ridícula tentativa de escrita sobre o não-escrever. Um paradoxo que me faz rir - é o que me sobra... Recolho os fragmentos de meus sonhos com uma pá e alimento a fogueira que queima na sala-de-estar.
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