quarta-feira, fevereiro 22, 2006

A dama



Piscou os olhos. Respirou fundo. Outra vez.
Encarregou-se de fazer o serviço, ninguém o poderia fazer. Lavou as mãos lentamente. Uma mão lava a outra. Considerou todas as conseqüências, quem se importa? Ouviu um estranho ruído, como se arranhassem a parede do outro lado. Arrepiou.
Fixou sua mente nos pesadelos que há muito tempo a atormentava. O sangue começou a escorrer das paredes inundando o apartamento, cobrindo seus pés, arrancando soluços de desespero. Fechou as cortinas. Em breve começaria os gritos, as vozes. Lutava para não chorar. Uma lágrima desceu de seu olho esquerdo. Os músculos se contraíram. Lembranças, palavras, letras, números. As cartas! O enforcado.
Sussurrava palavras de consolo para ninguém. Contentava com a solidão. Agarrou-se nas pequenas alegrias. Um sorvete, um sorriso, o cinema. Tentou em vão se lembrar de algum nome, um versículo, qualquer fragmento de sonho. Respirou fundo. Os gritos.
As luzes se apagaram, o sangue escorria, os gritos não cessavam. A voz de sua mãe aparecia de tempos em tempos juntamente com a imagem de um sapato de cetim, talvez fosse seu quando criança. Talvez.
O Pai.
Respirou fundo. Arrancou a adaga da cintura. Os gritos cessaram, o sangue estancou, a luz voltou. Considerou mais uma vez, ninguém se importa.
Novamente as cartas. A dama.
Quanto sofrimento agüentou. O pai a olhava do alto.
Abriu a porta, desceu as escadas. Ainda era dia.
Considerou mais uma vez, alguém tinha que o fazer. Alguém. Ela? Não hoje.